quinta-feira, 3 de junho de 2010

Gramática sem normas

Primeira mulher autora de gramática no país, a professora conclui obras em que coloca contra a parede as máximas do aprendizado gramatical brasileiro

Luiz Costa Pereira Junior


Maria Helena de Moura Neves aprendeu cedo a namorar as palavras. Menina, flertou três edições de Os Lusíadas, só para comparar as diferenças. Ensina português desde os 18 anos. Mas ainda mantém a premissa da infância: a gramática oferece sua força e beleza a quem mergulha em textos com olhar faminto.

Hoje, aos 78, a primeira mulher autora de gramática no Brasil conclui duas novas obras, pela editora Contexto, que prometem ser um divisor no debate sobre o aprendizado: o reflexivo O Ensino de Língua e Vivência da Linguagem, a ser lançado até junho, e as 1.300 páginas de Lições de Gramática de Usos, no fim do ano. A empreitada, hercúlea, imagina a gramática sem os limites de um ensino que mais afasta que aproxima o brasileiro de seu próprio idioma.

Maria Helena ainda lança, em coautoria, o 5o volume do Dicionário Grego-Português. Mal concluiu tais tarefas, no entanto, e já está requisitada para um novo dicionário de usos, coordenado pelo colega Francisco da Silva Borba, da Unesp. Coisa de uns três anos de trabalho, na equipe em que atuou em três outros dicionários, tempo que Maria Helena dividirá com os cursos de pós da Unesp de Araraquara (SP) e da Universidade Presbiteriana Mackenzie, na capital paulista.

Autora de Guia de Uso do Português (2003) e Gramática de Usos do Português (2000), pela Editora Unesp, coordena o gru po de pesquisa em gramática de usos do CNPq. Nesta entrevista, diz que há duas chagas nas salas de aula: a fé nas definições de categorias gramaticais, muitas das quais desmentidas pela realidade da língua, e a ânsia normativa, que limita o conhecimento sobre a vida da linguagem. Para ambos os vícios, Maria Helena oferece respostas de quem mergulha no idioma. Como faz desde menina.

Qual a razão de o brasileiro considerar chato o estudo do idioma?
Ele se torna chato porque o aluno é apresentado a rótulos. É levado só a ver procedimentos sintáticos, não a vida da linguagem. A aula insiste em que redação, gramática e leitura são coisas separadas, como se gramática fosse outro corpo de doutrina. Mas é o que organiza o uso da língua. Não é coleção de definições, pelas quais "substantivo" e "sujeito" são isso ou aquilo. A gramática é a conjunção de todos os componentes que criam sentidos e efeitos, organizando a intercomunicação. É o próprio mundo da linguagem.

O problema começa já na imagem que se faz dela?
A gramática é mais do que se diz que ela é. Pois sistematiza todas as ocorrências. É a organização do discurso, e implica as intenções. Você procura uma maneira de organizar o que diz, segundo o que quer ver recuperado de sua intenção. Não só do sentido. Quando digo algo, não quero só que a pessoa entenda a frase, mas por que eu a disse naquela hora, daquele modo.

Uma aula consegue apresentar isso ao aluno?
Se você pergunta se vale a pena pôr na lousa, a cada dia, o nome de uma classe de palavras e dizer o que ela é, a resposta é não. O ensino da língua tem de partir da vivência na linguagem.

Como se fornece vivência?
Integrando os componentes da gramática numa real imersão em textos. Tudo o que se diz é dito pela conjunção de sintaxe (organização da frase), semântica (produção de sentido) e pragmática (organização informativa). As classes de palavras não têm só função sintática, aquela na qual a escola se detém. Tomemos um pronome demonstrativo, "este". Analisando a expressão "Este livro", a tradição de ensino põe "este" como adjunto adnominal de "livro". Correto. Mas não é só isso o que ele faz num texto. Seu papel é o de referenciador - "este" aponta para algo, dentro ou fora do texto. Quando faço perguntas que me ajudam a entender a rede referencial do texto, a sintaxe sozinha não dá conta, pois os referentes se ligam, extrapolando os limites da frase. Na oração, há a sintaxe, mas o texto é uma organização semântica e tem direcionamento pragmático.

Não basta análise sintática?
Pensemos duas orações: 1) "Se você me desse mais atenção, eu faria de outro jeito" e 2) "Eu faria de outro jeito, se você me desse mais atenção". Em 2, pus as frases em outra ordem. Isso é sintaxe, arranjo de elementos da oração. Mas há função pragmática em cada um dos arranjos, que leva a efeito distinto na interpretação. Na primeira, lanço a hipótese e o que vem depois só tem valor enquadrando-se na moldura da hipótese. Pôr a 1 no lugar de texto da 2 dá outro efeito. A tradição do ensino dirá que "a oração pode vir anteposta ou posposta a outra". Mas não é que "pode vir" e isso seja indiferente. Sintaticamente, trata-se do uso de duas colocações possíveis no sistema, mas, pragmaticamente, trata-se da criação, ou não, de moldura mental na qual se inclui uma afirmação. Em 1, o falante dispensou a criação de moldura, e pôs a hipótese só como adendo.

A praxe é isolar a análise.
Aula de português é a única em que o aluno diz: vou descansar de pensar. Meu princípio é que o aluno deve mergulhar nos textos, refletindo - e não só usando-os para isolar enunciados que legitimem classificações. Tem de verificar quais mecanismos de construção há ali, mesmo que não os esgote.

Mas como escapar do ensino de classificações?
O problema é que a maior parte das definições isoladas não dá conta da categoria integralmente, e eu não saberia dar outra definição, na maior parte dos casos. Fiz uma gramática em que não dou definições, porque teriam de ser exaustivas, senão não seriam válidas. E, em gramática, isso é raro.

Por quê?
Há poucas coisas que se podem definir univocamente na gramática, como no geral. Define-se monossílabo, oxítono tônico. Mas com substantivo ou adjetivo, você não dá conta do que tem de ser definido. Nem é preciso. Entregar a definição e achar que, com aquilo, o aluno chega a um nível de conhecimento. Mas a tradição gramatical chega a dar definições que nem são verdadeiras.

De que tipo?
Todos aprendemos que adjetivo indica qualidade. Mas em "perícia médica", por exemplo, "médica" não atribui, propriamente, qualidade. Mas a definição não dá conta nem de casos assim. No ensino tradicional, "mas" é conjunção adversativa, une orações contrárias. Aí, o problema: ela também conecta frases de mesma direção, como "Comprei esse livro, mas em São Paulo". E conecta parágrafos, capítulos, até abre textos. Definição é receita, e não deve ser dada. Com a definição dada pronta, antes de o aluno entender, pela vivência, qual a entidade em questão, dá-se a impressão de que o idioma são caixas com rótulos. E isso não responde pelo funcionamento da linguagem.

Qual a alternativa, então?
A definição gramatical deve ser ponto de chegada, não de saída. A pessoa só chega à definição - se chegar - quando já sabe tudo daquilo que define. O máximo que se pode dizer do substantivo é que ele designa um feixe de propriedades. Nos é dito que "quando" é conjunção subordinativa temporal. Verdade, mas muitas vezes a vemos indicando mais hipótese que tempo, como em "Quando a crise chegar, você perderá tudo". A conjunção continua indicando tempo, mas desliza para uma hipótese, e tem de haver sensibilidade para isso, ou se perde o essencial da linguagem. Se fosse reduzida a moldes, a categorias estanques, a linguagem não diria tudo o que tem a dizer, e diz.

Mas o equívoco não estaria no modo de ensinar, não na definição?
Condeno a apresentação de meros paradigmas aos alunos. Veja a comparação, noção que, no ensino tradicional, é tratada só nos capítulos sobre adjetivos e orações subordinadas adverbiais comparativas. Está lá: "grau comparativo", como se comparação, em linguagem, fosse grau do adjetivo e seu modo de construção oracional. Comparar, na verdade, é discriminar, é o que mais o falante faz. Se digo "A outra entrevista que dei", com "outra" faço comparação, não quantitativa, de "mais" ou de "menos", mas entre "uma e outra". E está lá o professor dizendo ao aluno que comparar é, exclusivamente, dizer "mais bonito que", "tão bonito como"...
O erro começa em ensinar a norma pela norma...

Não basta dizer "não pode" porque está fora da regra de prescrição. O aluno precisa entender por que "não pode", mas todo mundo faz. Há sempre dois pontos de chegada nas aulas: a sistematização de paradigmas e a prescrição. Um significa chegar a simples esquemas frios, que não dizem muito; as definições vêm desligadas do uso, com o quadro de um sistema de categorias como "substantivo", "objeto", "oração subordinada". Já o outro ponto é chegar à normatização: dar exemplo de uma categoria implica que o que está fora dele é erro. A gramática é normativa mais pelos exemplos do que por outra razão. O professor vira refém de uma noção que é limitante.

Como a noção de exemplo limitaria a aprendizagem?
A gramática tradicional nunca diz: "faça tal coisa". Isso é feito nos livros declaradamente normativos. Mas, ao simplesmente dar exemplos, damos caixinhas limitadas, como se representassem todos os casos. A gramática na escola é normativa pelas beiradas. Só ao ser aplicada, vira prescrição: não diga isso, não escreva aquilo. As lições têm sido rituais, sem vivência. Isso não é aula de gramática. Veja a oração proporcional. No ensino tradicional, é a que indica proporção, "tanto... quanto..."; "tal... como...", o que é exato. Mas, quando se busca o que indica proporcionalidade, em poesia e até textos técnicos, muita coisa foge dessa regra tão redutora. A posição de quem lida com exemplos como se fossem fórmulas é a de que não é preciso penetrar na linguagem para ver do que se dispõe para a expressão das relações, basta ter o exemplo, apresentado quase como carimbo. Mas o aluno precisa conhecer as opções que tem para criar proporcionalidade, com efeitos diferentes, nas situações que vai vivenciar.

Como fugir da armadilha?
Vendo como a gramática e o contexto operam um dado arranjo de texto. Sabemos que uma construção concessiva com "ainda que" é usada para refutar previamente uma objeção. Dizer "Ainda que você me pedisse, não faria" é como afirmar "Não venha pedir depois, que não farei". Estou pensando numa categoria, a relação concessiva, no que faz em um texto, semanticamente, como se organiza sintaticamente e que efeito textual pragmático tem. As construções concessivas são um modo de estabelecer um diálogo implícito. E quem as constrói, para que haja esse efeito, é a gramática.

Não haveria sobreposição de métodos na escola?
Tempos atrás tudo era pacífico nesse campo. Era pegar o manual e levá-lo a uma turma. Não havia angústia, nem esforço por fundamentação. Com a proliferação das faculdades, passou a haver. Um professor já atua diferentemente se egresso de uma faculdade que fez valer uma gramática gerativa, uma descritiva, funcionalista ou outra mais.

A falta de unidade não é prejudicial à educação?

O que está difícil é achar um caminho para que as partes envolvidas vejam que a gramática faz sentido na escola. Há teóricos que dizem que não se deve nem levá-la à escola; outros, que se deve. Mas cada um tem em mente uma gramática.

Não há predomínio do vale-tudo gramatical?

A gramática tradicional não diz como alguém deve falar. Fornece categorias. Cria paradigmas, uma organização modelar do que está no sistema da língua. Nas aulas, o professor tem de mostrar que há uma norma valorizada, em certas situações um uso é desabonado e, se o aluno insistir nele, será malvisto. Mas também deve mostrar a diversidade de opções de que a pessoa dispõe para comunicar-se. Com isso, ela ampliará seu repertório. E terá mais liberdade de escolha.

O que daria denominador comum a essas correntes?
As aulas têm de satisfazer as necessidades do aluno, de agir refletidamente, de enfrentar desafios e discutir questões, percebendo a funcionalidade das escolhas. O sistema da língua só manda no "software". O que farei, usando esse software, é assunto meu. Se disser "chave a", e não "a chave", o software da língua "não roda", não faz um texto em português. O resto, quase todo, é escolha. Escolhemos a ordem, o tom, a velocidade, o relevo, os termos usados.

Tenho diante de mim um fenômeno gramatical. Como ensiná-lo?
Olhando o fenômeno de linguagem. O professor pode pegar o máximo de textos, que mostrem diferentes ocorrências, e discutir como cada uma produz sentido. O aluno deve perceber a funcionalidade das escolhas, subtrair-se a atividades mecânicas e bloqueios de uso, e manter contato com o sentido dos criadores da palavra. Da literatura, mas não só dela.

O que se faz vai mesmo na contramão disso?
Ante uma frase como "O menino viu a bola", a escola pede ao aluno que substitua "bola" por um pronome pessoal. Em um livro didático, há uma crônica com a frase "Os técnicos chegaram cedo de macacão", na qual, se trocássemos o sujeito por "eles", como manda um dos exercícios do livro, e voltássemos ao texto, a leitura ficaria incompreensível. É a história de uma mãe que comprou um robô para ser pai de seu filho, pois o verdadeiro tinha dado no pé. Entregam na casa uma caixa imensa, o garoto fica olhando, sem saber o que há dentro. Só aí começa o parágrafo: "Os técnicos chegaram...". O termo é indispensável: primeiro, "eles" não recupera nenhum referente no texto anterior; depois, o termo original já avança a informação de que a caixa contém um aparelho a ser instalado (por técnicos). É o fluxo de informação construindo o sentido. A linguagem se fez. Trocar a palavra seria aberração. Você estaria desmentindo tudo o que a linguagem é.

http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=11999

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