quarta-feira, 5 de novembro de 2008
Literatura e cinema
Ponto cego na clareza humana (Ponto claro na cegueira humana)
Autor: Antonio Gil
O que será que é de mais valia: ler o livro e ver o filme ou ver o filme e ler o livro?
Falo melhor: primeiramente ler o livro e depois, num outro compasso de tempo, ver o filme que se fez a partir dele, ou ver o filme, nascido das palavras escritas, para depois, num outro compasso de tempo, conferir a sua fonte inspiradora, o livro?
Confusão? Pode ser. Nem sei por que falo sobre isso... Uma espécie de atordoamento me faz pensar estas coisas que aqui digo por escrito, aberto ao tempo e ao espaço.
O que quero dizer é sobre o que me sobressalta a alma agora que saio da sessão do supercomentado “Ensaio sobre a Cegueira”, filme do diretor brasileiro Fernando Meirelles, uma adaptação da obra do escritor português José Saramago que leva idêntico nome.
Saio do filme agorinha e anoto algumas idéias no meu caderninho de registros que me acompanha sempre, por conta das cegueiras miúdas que pipocam nas minhas memórias, à medida que vão se exercitando no trivial do cotidiano.
Você já viu esse filme tão discutido? Ou então: já leu o livro?
O filme pode ganhar vários adjetivos. De cara dou alguns: muito bonito, chocante, chacoalhante, estarrecedor, fino, insólito, apoteótico, arrebatador, enigmático, instigante, inteligente, apocalíptico... (Não sei o que diriam, no entanto, pessoas que saíram durante a sessão do filme, procurando uma espécie de feixe de luz familiar na escuridão do desconhecido).
Ele, o filme, exige que você fique ali. Esperto, presente e por inteiro. Não dá pra fugir na calada do escurinho do cinema, assim como quem veio apenas para se divertir, descompromissadamente...
Conto para você só o que todo mundo conta. É a história que se enreda a partir de um acontecimento inusitado, insólito: um homem fica cego repentinamente em meio ao trânsito de uma grande cidade, sem mais nem menos, num vapt e sem vupt. E aí se instala uma epidemia. O caos total. Uma situação limite que jamais ousamos pensar um dia ocorrer em nossa vida comum.
É ver para refletir.
Como seria o mundo se as pessoas fossem ficando cegas, absolutamente cegas, em breves compassos de segundo, como folhas de outono caindo ao chão e entregues à escuridão dos tempos e às adversidades da vida social?
Fiquei o tempo todo me perguntando e refletindo em cima de sentimentos nascidos do meu contato com o filme sobre os fios das metáforas que se desenrolavam aos meus olhos nus, primatas e acostumados a ver o que se pode ver.
O que aprendemos a olhar em nossa experiência humana de enxergar e ver? Quantos pontos cegos existem na suposta largueza da visão humana? Lembrei-me, agora, que meu choque manso e inicial ao filme se acomodou quando ouvi uma música linda e que soava como um bálsamo naquela escuridão criada, compulsiva e atroz. Me vem à mente agora algo que não consegui perceber por inteiro nele, mas que sinto ser algo importante: seria a cegueira coletiva e implacável uma metáfora do ceticismo humano?
Para mim, o filme é como um ponto cego na nossa tentativa de compreender a nossa vida de humanos, por vezes, tão desumana e tão cruel. E por considerar essa minha leitura de tudo isso como um ponto cego, vou caminhando por ele até chegar a uma clareira compreensiva, mesmo que provisória, mas que me faz pensar, dizer, expressar, escrever... Dar o meu recado.
Sei que Saramago diz que sua obra é “uma parábola sobre o triunfo do espírito humano quando a civilização vem abaixo”. E sei que Fernando Meirelles tenta seguir fielmente a trama de Saramago e penso que pretende gerar uma reflexão sobre os padrões de comportamento e a moral do ser humano e como esses se modificariam se passassem por uma situação limite como a desta história. Acho que o filme cumpre e vai além de sua premissa. Não basta ter olhos, é preciso querer ver...
Agora preciso ler o livro. Fico incomodado e em tempo de espera. Vou me recobrando dos efeitos mais que óticos que o filme deixa em meu sentimento e vou buscando as lentes das palavras impressas, para me aliviar e me encantar com a vida que pulsa diante de nossos olhos infantis.
E você, viu o filme? Leu o livro? Pensou coisas a partir desta história ou dessas palavras? Conte...
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